segunda-feira, 30 de maio de 2016

Um episódio na Parada LGBT


Andei com a Tania na Parada da altura da Ministro Rocha Azevedo com a Paulista até a Antonia de Queirós com a Consolação, e aí decidimos virar para Augusta e tomar uma cerveja antes de voltar para casa. Sentamos numa mesa na calçada de um bar e o papo estava triste, falando sobre o panorama conservador que enfrentamos, casos, ideias, teorias, permeadas por uma sensação de desânimo e impotência. Em dado momento um homem de meia idade, mestiço, um pouco gordo, mas forte, cabelo curto e um início de calvíce, nenhuma característica marcante na verdade, nos abordou. Nos cumprimentou com um aperto de mão e disse:
- Estou aqui para passar uma palavra para vocês.
Já fiquei de bode, odeio ser abordada, achei que ia querer vender algo, pedir algo, ou só fazer um discurso inconveniente.
- Vocês têm que se proteger viu, vocês, meninas, precisam se proteger.
Achei que estava falando sobre sexo seguro, até por estarmos onde estávamos no dia em que estávamos. Ele já havia abordado a mesa anterior, com um casal, não sei o que falou, mas deveria ser na mesma linha.
- Pode deixar – respondemos - Vamos nos proteger sim.
- Vocês precisam se proteger porque vocês são mulheres, vocês são as presas. Os homens, nós somos predadores, eu não, mas os homens são ruins. Um homem é forte, um homem pode te dominar, o que você vai fazer?
Nossa, não era isso que eu achei que ele ia falar. E que raciocínio invertido. Vou concordar para ele ir embora logo. Só fiz que sim com a cabeça. A Tania não conseguiu engolir.
- Mas vocês homens que não podem atacar mulheres.
- Ah, mas não tem como, somos irracionais. Minha filha está aqui na Parada, eu falo isso para ela. Vocês mulheres têm que se proteger.
A Tania insistiu.
- Mas não é certo isso, as mulheres não têm que se esconder, os homens que têm que saber o que é certo.
- Mas veja, é assim que as coisas são. Pode ser que a gente saiba que não é certo, mas homem é forte, bravo, mulheres, dizem, são sensíveis, delicadas. Você – apontando pra Tania – você está vestida de um jeito discreto – A Tania estava com uma calça jeans, camiseta branca e casaco cinza – mas você, você está chamando muita atenção, tem que tomar cuidado.
Eu estava com um vestido fechado do pescoço até o joelho, meia calça opaca e tênis. Sim, o vestido era bem estampado, sim, meu cabelo é azul. Mas ainda assim, e nem assim. E aí também não dava para abaixar a cabeça e ignorar, não dava para ser conivente.
- De jeito nenhum, eu posso me vestir do jeito que eu quiser, não posso ficar me protegendo ou mudando quem eu sou por ter medo. Eu tenho que poder ser quem eu sou e os homens têm que me respeitar porque é isso que as pessoas têm que fazer, senão não dá para viver.
Silêncio.
- Taí, você tem razão.
Silêncio, da nossa parte, em choque.
- Vocês estão certas, não tinha pensado por esse lado. É uma questão de respeito.
- Sim! Cada um têm que poder se expressar. Inclusive você pode ser sensível também.- Não, não, eu não sou assim. Mas vocês estão certas, vocês são mais fortes.
A Tania complementou:
- Mulheres são estupradas até de burca, não é cobrir que resolve. Eu poderia sair pelada, de plumas ou toda de preto. Nada disso é convite, nada disso significa que eu não possa falar não.
- Até de burca, meu deus. Não tem limite, até onde vocês têm que se cobrir, não pode ser assim.
Continuei:
- A gente sabe que o mundo ainda é perigoso, mas a gente sabe se proteger. A sua filha também. E a gente vai proteger ela, as mulheres vão se ajudar. E vocês homens têm que fazer parte dessa lutar e nos respeitar. Agora se você não se importa, eu queria continuar a conversar com a minha amiga.
- Olha, estou muito feliz que vocês falaram isso. Eu estava muito preocupado, mas agora eu mudei minha cabeça, estou em paz. Muito obrigado, e deus abençoe vocês. Estou em paz mesmo.
Ele seguiu o caminho dele sem abordar nenhuma outra mesa, foi viver a vida dele. Provavelmente ele trouxe a filha e estava perambulando e esperando. Provavelmente estava um pouco bêbado, apreensivo por ela, por estar num ambiente que talvez para ele parecesse hostil. Mas houve uma virada de percepção, de visão de mundo, tão rápida, tão fácil, tão serena. Sentamos, a Tania literalmente chorou de alegria. Brincamos que a deusa mandou aquele sujeito especialmente para a gente recuperar a fé, que ninguém no mundo real seria assim. Muitos não são mesmo, mas esse cara era. Espero que ele "passe essa palavra", que comece a achar estranho quando amigos fizerem comentários violentos. Que empodere a filha dele por reconhecer a força e a liberdade que ela merece.
Já teria valido sair de casa para fazer número e defender o que é certo. Mas esse encontro absolutamente surreal fez valer muito mais, deu ânimo, um desejo que outros diálogos com esse nível de delicadeza possam se multiplicar em todos os lugares. E aí vale escrever e dividir para animar quem não tenha tido um momento assim nos últimos tempos e queira uma dose de esperança para começar a semana.



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