Devo começar esta triste história explicando que meu pai é sueco, logo, metade da minha família – e de mim – também.
Por causa disso, eu
vou à Feira Escandinava desde que me conheço por gente. Era lá que a gente
comprava as comidas para a ceia de natal, mas era também todo um ritual: todo
ano a gente comprava as mesmas coisas, comia os mesmos sanduíches servidos
pelas mesmas pessoas, e eu passava um tempo com a minha avó, que sempre
trabalhou em uma das barracas da feira. Teve até um ano que eu fui assistente
dela fazendo embrulhos.
Desde 1997 minha avó
já não trabalhou mais lá. Meus avós voltaram definitivamente para a
Suécia, e lá faleceram. Mas eu continuei indo todo santo ano, fazendo
exatamente a mesma coisa. E na barraca da minha avó, sempre me enchi os olhos
de lágrima, de saudade (já enche só de escrever sobre isso).
Com o passar dos anos,
foi todo mundo perdendo o saco de ir na feira – pai, mãe, irmã... Estava cada
vez mais cheia e já não dava para comprar nada. Mas eu continuei indo, mesmo
sabendo que alguma coisa grande tinha mudado no caráter do evento, e não era só
a minha experiência familiar.
No ambiente das
comidas, o mais disputado, formavam-se filas gigantes, os corredores eram esgotados em segundos, e eu ouvia comentários como “Benhê, o que é isso?” para, digamos,
um pote de arenque “Sei lá” “Ah, vou pegar uns três”. Aí na fila do caixa,
começava o escambo. “O que é isso no seu carrinho? Troca por um desse?” e eu não
estou exagerando, porque uma vez em Roma – e claramente não em um país nórdico –
só me restava aderir a essa loucura para conseguir os ingredientes da ceia e eu
fazia altas negociações. Isso sem contar os carrinhos abandonados na frente do
caixa, as pilhas de produto no chão porque as pessoas pegaram coisa demais e
não conseguiam pagar... Em suma, uma experiência chata e estressante.
Mas eis que este ano meu
pai se animou de ir de novo, e eu achei que ia ser bacana. Nós temos convites,
que em teoria são para a comunidade escandinava, para quem entende a
feira como tradição e como um elemento de identidade cultural. Mas ao chegar
lá, a fila dobrava esquina, e seguia. Quando os portões se abriram, criou-se
uma grande muvuca na porta e resolveram deixar as pessoas entrarem em turnos.
Nas conversas telefônicas à minha volta, eu ouvia coisas como “já entrou? Tá com
carrinho? Pega tudo, não vai sobrar nada”.
Vejam, aqui é
importante fazer um parêntese de que eu não acho que este deva ser um evento
fechado, sempre adorei levar meus amigos e eu mesma sou metade brasileira com muito orgulho. A questão
não é nem quem entra, deixa de entrar, ganha convite ou não. É na postura do
consumo, num absoluto esvaziamento de significado do evento.
Pela primeira vez, talvez
porque meu pai estava comigo, tive coragem de desistir. Coloquei os óculos
escuros para disfarçar que estava chorando. A minha sensação é que naquele
momento, aquela horda insana por consumir sabe-se lá o que, roubou minha avó e
minha infância de mim.
Não digo que nunca
mais vou. Mas se voltar, já não será com aquele carinho que por tantos anos eu
consegui preservar sobre esta tradição. É realmente uma pena.