Havia uma guerra e eu era um soldado. Meu lado parecia estar
fazendo progresso. A cidade era um grande edifício, se desenvolvia
verticalmente em escadas e níveis, cada apartamento era uma casa, mas tinha bastante
sol, com pátios internos e varandas.
Éramos guerrilheiros. Saí de uma conversa com o chefe da
minha equipe e entrei num dos apartamentos desta cidade-prédio. Era um único
cômodo, com dois sofás logo na entrada, uma mesa redonda ao fundo com o tampo
de feltro verde, onde pai, mãe e duas filhas jogavam cartas.
“Estamos em guerra!” Eu gritei, e família se assustou. Fiquei
chocada que eles não sabiam, mas voltei a acalmá-los, avisando que ia protegê-los.
Comecei a fechar todas as janelas com tranca, menos uma. Eram todas opacas,
menos uma.
Eu estava ao mesmo tempo me escondendo, protegendo a família
e ficando refém, pois não sabia como ia sair daquela casa. Do lado de fora, uma
mulher, soldado dos inimigos, reparou na janela que não fechava, que dava para
um pátio interno onde ela fazia patrulha. Ela abriu e começou a espiar pra
dentro, querendo caber toda dentro da casa. A família viu e acenou, não me
entregaram. Eu fiquei escondida embaixo do sofá.
Achei que era hora de ir. Um soldado inimigo se aproximava
da porta, eu podia ver pelo olho mágico. O pai, grande e corpulento, abriu e
recebeu o soldado. Quando eles estavam de costas, o abraço do pai quase tirava
o soldado do chão, e eu saí correndo de lá.
Não sei o que aconteceu depois. Resolvi voltar para a casa,
para ver se a família que tinha me abrigado estava bem. Mas não havia mais
ninguém na casa, estava tudo revirado. Mais uma vez me vi protegida e refém,
mais uma vez tinha me metido neste lugar e precisava pensar como sair.
Comecei a espiar pelo olho mágico, procurando o soldado
loiro que andava pela porta. De repente sinto uma mão segurando minha batata da
perna. Era ele! Já sabia que eu estava lá e estava só esperando eu estar
desatenta – quem imaginou que procurando por ele seria quando ia baixar a
guarda.
Ao sair, capturada, vi a filha menor da família sentada no
chão, sozinha, suja, chorando, com seus grandes cabelos enrolados.
Entendi que os pais dela tinha sido mortos, então peguei-a no colo e não ia
soltar de jeito nenhum. Queria cuidar dela, e achava que não fariam mal para
mim se estivesse com uma criança.
“Já faz muito tempo que vocês perderam essa guerra” disse o
soldado “sobraram alguns de vocês que estavam escondidos e ainda não sabiam.
Mas nunca tiveram chance. Nós os chamávamos de ‘pequenos rebeldes verdes’”.
O homem tinha farda, medalhas, armas. Eu me sentia burra,
pobre, perto de toda a estrutura que ele representava. Senti que éramos
realmente pequenos.
Caminhamos, eu com a criança e o soldado, até a porta de um
templo. Era lá que meu destino ia ser definido. Minha mãe e minha avó estavam
na porta. Entreguei a criança para elas, falei que era minha. Queria que ela
fosse cuidada como sangue do meu sangue, era por minha culpa que sua família fora assassinada.
Ao entrar, tiraram-me os sapatos. Nesse lugar só havia
mulheres. Uma senhora oriental fez uma pilha com tijolos, uns seis empilhados,
e mandou que eu me sentasse em cima deles para lavar meus pés num espelho d’água
imundo que ficava no centro do pátio deste templo.
Comecei a lavar meus pés, mas estava muito alta na pilha
para chegar à água, e acabei caindo e derrubando todos os tijolos. Chorei,
joguei os tijolos longe, me descontrolei. Outras prisioneiras que também lavavam
os pés ficaram me olhando, em silêncio. Havia muitas mulheres circulando neste
pátio.
A senhora não se alterou, refez a pilha de tijolos e mandou
que eu começasse a lavar meus pés de novo. Percebi que deveria ser grata e
educada com a mulher para ter alguma chance de permanecer viva.
Lavei os pés, vesti minhas meias. Eu ia agora encontrar a
anciã, que ia definir qual seria a minha pena.
Acordei.